Uso terapêutico da Cannabis ainda enfrenta resistência no Sul de SC
Apesar dos avanços no estado, a falta de dados locais e a resistência de profissionais de saúde dificultam o acesso à cannabis medicinal na região sul de Santa Catarina
A cannabis medicinal tem se consolidado cada vez mais no Brasil como uma alternativa terapêutica para o tratamento de doenças como epilepsia, autismo, dor crônica e Parkinson. Mas enquanto o uso de cannabis avança em muitas regiões, o sul de Santa Catarina, especialmente Criciúma, ainda enfrenta alguns desafios.
A falta de dados locais sobre pacientes, a resistência que ainda é insistente entre alguns profissionais de saúde e a ausência de uma regulamentação eficaz são alguns dos obstáculos que dificultam o acesso à cannabis medicinal na região.
Em 2023, Criciúma realizou uma audiência pública para discutir a possibilidade de disponibilizar medicamentos à base de canabidiol pelo SUS, mas, até agora, a cidade não teve um retorno sobre o tema. O impasse é reflexo da situação em muitas cidades do estado, onde a adesão ao uso medicinal da cannabis encontra resistências tanto no campo legislativo quanto na prática médica.
Realidade local: resistências e falta de dados
A farmacêutica, doutora em Farmacologia e professora da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), Flávia Rigo, explica que, em cidades como Criciúma, ainda não há dados locais, por exemplo, sobre o número de pacientes que utilizam cannabis medicinal.
“Embora existam anuários nacionais que mostram que mais de 600 mil pessoas no Brasil estão utilizando medicamentos à base de cannabis, na nossa região ainda não temos informações suficientes para entender o real impacto dessa terapia”, comenta a doutora.
A falta de dados precisos é também um desafio para a construção de políticas públicas mais eficazes e para a conscientização tanto dos pacientes quanto dos profissionais de saúde. “É importante que a gente tenha um mapeamento real da demanda e da utilização de cannabis medicinal. Isso vai ajudar a formular políticas públicas e facilitar o acesso das pessoas que realmente precisam do tratamento”, acrescenta.
A resistência de profissionais de saúde também é uma barreira, mesmo diante da crescente comprovação científica dos benefícios da cannabis medicinal.
“Em Criciúma e em outras cidades, ainda vemos muitos profissionais da saúde que não aceitam as evidências científicas sobre o uso medicinal da cannabis. Mesmo com mais de 30 mil artigos publicados sobre o tema em plataformas como o PubMed, ainda existe um estigma e uma falta de informação que dificultam essa adesão”, explica Flávia.
A especialista acredita que, para mudar essa realidade, é essencial que a educação sobre cannabis medicinal seja uma prioridade no campo médico.
A Unesc e o papel da pesquisa
A Unesc é referência na região por promover discussões científicas sobre o uso medicinal de cannabis e por realizar estudos que buscam comprovar a eficácia desses tratamentos. Flávia, que é uma das líderes de projetos de pesquisa na universidade, explica que dois grandes estudos estão em andamento, focados em pacientes com Parkinson e fibromialgia.
“Estes estudos vão testar a eficácia dos medicamentos à base de cannabis, e esperamos que eles tragam resultados positivos para que possamos aplicar essas terapias de maneira mais ampla e segura”, comenta.
A universidade tem se empenhado em oferecer programas de capacitação para profissionais de saúde, com o objetivo de fornecer conhecimento baseado em evidências.
“Estamos organizando pós-graduações e seminários para médicos, farmacêuticos e outros profissionais da saúde, para que eles possam se aprofundar no conhecimento sobre cannabis medicinal. A ideia é tirar o tabu do tema e oferecer informações responsáveis, que ajudem a construir uma visão mais científica sobre o uso terapêutico da planta”, diz Flávia.
A Unesc também atua na busca pela conscientização da população, para tentar combater os tabus. “Realizamos simpósios e eventos abertos à comunidade, com o objetivo de informar e esclarecer dúvidas sobre os benefícios da cannabis medicinal”, afirma Flávia.
A educadora acredita que, à medida que mais pessoas entendem os efeitos positivos da cannabis no tratamento de doenças como epilepsia, dor crônica e transtornos de ansiedade, a aceitação do tratamento cresce.
Avanços e expectativas: a lei do fornecimento pelo SUS
Recentemente, o estado de Santa Catarina deu um grande passo para a popularização do uso medicinal da cannabis, com a aprovação de uma lei que garante o fornecimento gratuito de medicamentos à base de canabidiol pelo SUS.
A lei, aprovada no final de novembro de 2023, agora aguarda sanção do governo estadual, mas já representa um avanço importante para a acessibilidade dos tratamentos. Segundo o deputado Padre Pedro Baldissera, um dos defensores da lei, a medida pode transformar a vida de muitas famílias.
“Esse é um passo muito importante para garantir que todas as pessoas, independentemente de sua condição financeira, possam ter acesso a um tratamento que pode melhorar a qualidade de vida de muitos”, afirmou através da rede social.
A especialista explica que a lei é um marco, mas alerta para os desafios que virão na implementação. “A aprovação da lei é um grande avanço, mas a sua implementação precisa ser bem estruturada. A logística de distribuição dos medicamentos e o acompanhamento dos pacientes serão pontos-chave para o sucesso dessa política pública”, ressalta.
Necessidade de produção local e maior apoio governamental
Além da questão do fornecimento de medicamentos, outro desafio que a região sul de Santa Catarina enfrenta é a falta de uma produção local de medicamentos à base de cannabis.
Atualmente, muitos pacientes dependem da importação de produtos, o que torna o tratamento caro e nem sempre acessível. “Santa Catarina tem grande potencial para se tornar um polo de produção de cannabis medicinal. Acredito que, com o apoio do governo estadual e de centros de pesquisa como a Unesc, poderíamos desenvolver uma produção local que atendesse a demanda de pacientes e também gerasse oportunidades de emprego na região”, sugere Flávia.
No entanto, para que isso aconteça, é necessário que haja uma regulamentação mais eficiente e um apoio maior da administração pública. Flávia acredita que, ao investir na infraestrutura de cultivo e produção, o estado poderia não apenas atender à demanda interna, mas também colocar Santa Catarina na vanguarda da produção de cannabis medicinal no Brasil.
Superando preconceitos e olhando para o futuro
A discussão sobre a cannabis medicinal no sul de Santa Catarina ainda enfrenta desafios, mas a visão de Flávia, e de outros especialistas, é otimista. Ela acredita que, à medida que mais estudos científicos sejam realizados e mais profissionais de saúde se engajem na discussão, o tratamento com cannabis será cada vez mais aceito.
“A nossa missão é continuar educando, pesquisando e, principalmente, mostrando à sociedade que a cannabis medicinal é uma realidade que veio para transformar vidas”, conclui.