Paulo Monteiro
Cidade de Deus: A Luta Não Para é uma das melhores séries do ano
História fictícia é reflexo de dores e sonhos reais de toda uma comunidade do RJ
Ainda que culturalmente as novelas tenham ocupado o papel de carro chefe do audiovisual brasileiro ao longo das últimas décadas, existe um espaço que aos poucos está sendo preenchido pelas séries produzidas no país. Sob Pressão (2017-2022), Impuros (2018), Os Outros (2023) e Cangaço Novo (2023) são apenas alguns exemplos recentes e de destaque de seriados brasileiros que foram capazes, de certa forma, de “furar a bolha”. Eis que chegamos em 2024 e, mesmo que “competindo” com grandes produções internacionais, temos uma série brasileira entre as melhores do ano.
Dirigida por Aly Muritiba (Deserto Particular e Ferrugem), Cidade de Deus: A Luta Não Para é sem sombra de dúvidas uma das melhores séries do ano. A obra é um resgate sóbrio do do filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund que, lançado em 2002, figura em algumas das listas dos melhores filmes de todos os tempos – incluindo a dos 100 brasileiros da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema).
A obra se passa no início deste século, 20 anos após os acontecimentos do filme. Buscapé, um dos personagens principais do longa, retorna à Cidade de Deus no Rio de Janeiro enquanto fotojornalista, com o objetivo de documentar a realidade da favela. Duas décadas depois, o fato é que pouco mudou na comunidade – que continua lidando com conflitos entre policiais, traficantes e milicianos que colocam em risco a vida dos moradores.
Pode soar desnecessário resgatar os personagens de uma das obras mais consagradas do cinema nacional para colocá-los em uma série mais de duas décadas depois. E de fato seria, se o apelo da produção estivesse concentrado somente na memória que temos do filme. Felizmente, não é isso o que acontece com A Luta Não Para. Aly Muritiba aproveita o status de Cidade de Deus para atualizar discussões que foram iniciadas pelo longa nos anos 2000, mas que não necessariamente concluíram por ali.
Buscapé, Barbantinho e Berenice, personagens do filme, voltam para conduzir a história de uma Cidade de Deus que é palco de um conflito teoricamente novo, mas ainda assim antigo em suas características. Uma comunidade que tenta resistir, existir e prover o melhor para os seus moradores ao mesmo tempo que sofre com uma disputa de poder entre traficantes e milicianos e, também, pela repressão descabida e assassina por parte do Estado.
Temas como sensacionalismo da mídia, espetacularização das mortes nas favelas e o impacto da corrupção do Estado no dia-a-dia da comunidade, que de certa forma não existiam em Cidade de Deus (2002), ao menos não explicitamente, passam a ser fundamentais em A Luta Não Para (2024). Se Meirelles e Lund construíram os pilares que explicam as dores e sonhos daquela comunidade, Muritiba os amplia e os torna mais altos. Dá mais camadas para a vida dos moradores e para os problemas que passaram a enfrentar duas décadas depois.
A série mergulha, também, em uma discussão sobre a inserção da milícia na realidade das comunidades periféricas e como os seus moradores pagam caro por isso. A dor é tema a ser discutido, e não explorado por si só, e contrasta com as relações de amor e trabalho que surgem dentro da Cidade de Deus e conectam seus personagens.
Destaque também para uma Roberta Rodrigues (Berenice) inspirada, que cativa ao transparecer a força, dor e amor de toda a Cidade de Deus, e de um Alexandre Rodrigues (Buscapé) extremamente carismático, que carrega toda a afeição construída no filme de Meirelles e a complementa em uma nova fase da vida, agora adulto e pai de uma adolescente. Sem esquecer, também, da atuação de Thiago Martins (Bradock), que passou de uma criança assustada e perigosa para um criminoso incontrolável e em conflito consigo mesmo.
O fato é que Cidade de Deus: A Luta Não Para é o retrato de uma realidade que muitas pessoas viram apenas pelas páginas de jornais e pelas matérias de TV ao longo dos últimos anos, com o diferencial de que soa verdadeiramente como se estivesse sendo contada de dentro. Não está restrito à dor de quem mora na favela, mas sim aos sonhos e boas relações que são sistematicamente interrompidas pelo Estado e pelo crime. Curioso, também, é a forma como uma obra que se passa por volta de 2004 consegue abordar as exatas mesmas problemáticas que o Rio de Janeiro enfrenta em 2024.
Nota: 4 /5 de 5
Cidade de Deus: A Luta Não Para conta com 6 episódios e está disponível na Max. Confira o trailer da série: